Publicado em 1930, O Quinze tornou-se um dos
livros mais populares de Rachel de Queiroz. Em meio ao drama da seca, o
narrador dessa obra – narrador heterodiegético – insere suas personagens em
dois planos: 1) por um lado, deparamo-nos com a personagem feminina Conceição,
que se vê dividida entre a possibilidade de emancipação, proporcionada pelo
universo do conhecimento, e o aprisionamento doméstico, representado pela
efetivação do casamento; 2) e, por outro lado, deparamo-nos com a personagem
Chico Bento que, com sua família, decide caminhar de Quixadá até Fortaleza para
tentar fugir da seca, ocasião em que se defronta com necessidades limítrofes da
sua dignidade humana. Diante disso, retomamos O Quinze, no ano em que a seca que serviu como contexto para sua
enredística completa seu centenário, com o objetivo de realizar estudo crítico
sobre sua estrutura, além de enfatizar o debate que vem à tona à medida que,
cem anos após essa grande seca, ainda percebemos a existência de tal problema.
Em seguida, apresentamos dois trechos dessa obra:
5
Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava
arribar.
Sem legume, sem serviço, sem meio de nenhuma espécie, não
havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse.
Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...
Alta noite, na camarinha fechada que uma lamparina moribunda
alumiava mal, combinou com a mulher o plano de partida.
Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede,
os olhos cegos de lágrimas.
Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la,
contando-lhe os mil casos de retirantes enriquecidos no Norte.
[...]
Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas
correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada
o filho pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se:
– Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde
é que a gente vai viver, por esse mundão de meu Deus?
A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações
e promessas:
– Em todo pé de pau há
um galho mode a gente armar a tipoia... E com umas noites assim limpas até dá
vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha
carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho?
Cordulina baixava a cabeça. Chico Bento continuou a falar.
(QUEIROZ, p. 26 – 27)
9
Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica,
surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas
raspadas.
– Mãezinha, cadê a janta?
– Cala a boca, menino! Já vem!
– Lá vem o quê?...
Angustiado, Chico Bento apalpava os bolsos... nem um triste
vintém azinhavrado...
(QUEIROZ, p. 46 – 47)
14
Deitada
na cama, com a luz apagada, Conceição recordava Vicente e sua visita.
A
verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa
auréola de herói de novela!
Metido
com cabras... não se dava ao respeito... E ainda por cima, não se importava nem
em negar...
Mãe
Nácia, porque naturalmente, no tempo dela, aguentou muitas dessas, diz que não
vale nada...
[...]
Foi
então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem
nada do que ela lia.
Ele
dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...
Num
relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a
diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.
O
seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim de natural e
feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.
Ele
lhe aparecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num
sombrio misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote do
cavalo, a gente para ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um
cantinho do céu...
Mas
volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado,
escavado de minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de
redor pingando tristemente.
(QUEIROZ, 1993, p. 78 – 79)
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 58. ed. São Paulo: Siciliano, 1993.
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