A memória, já me
advertira Lygia Fagundes Telles no conto Papoulas
em feltro negro, um dos meus favoritos, superdimensiona demais as coisas.
Nem sempre o que ela insiste em mostrar corresponde, de fato, à realidade.
Depois de dez anos, eu
precisei entrar na casa de minha bisavó – eu já não era mais aquele cujo
coturno fez ressoar passos de juventude redescoberta aos dezoito anos – e
fiquei perplexo. Eu sempre me referia àquela casa como o casarão, meu Deus! Mas
não, não era um casarão: era uma casa até bem pequena, de paredes simples e portas contíguas. Aquela
casa era de tal modo imensa para mim, de tal modo representava grandezas
físicas e emocionais que, ao reencontrá-la, já sem minha bisavó em seus
recantos, fiquei em silêncio estranho.
Não era um reencontro decepcionado
o que se dava, não era isto. Estava mais para uma constatação amedrontada: se
fui capaz de me iludir por tanto tempo sobre aquele espaço, eu poderia estar me
iludindo em relação a tantas outras cenas e cenários vividos com intensidade
por minha memória que guarda demais...
Não, Deus, não estou me
reclamando da minha memória – ela é tudo o que tenho, ela é tudo o que sou. Mas
descobri assustado, não sem tristeza e solidão, que a memória é campo denso,
capaz de forjar cômodos inexistentes, de redefinir caminhos com acenos em dias
escuros.
*
Hoje, por acaso,
encontrei uma canção que eu escutava em 1998, quando eu tinha catorze anos.
Esta canção eu ouvia antes de ir para a escola, num canal de televisão, toda
manhã. Depois de um tempo, a emissora não mais a exibiu e eu, impedido pela
vida e seus reveses, nunca mais a encontrei, ou a escutei. Eu repetia sua
melodia na memória sem saber nada sobre sua letra ou título – a letra é escrita
em língua inglesa e a emissora não exibia seu título.
Quase vinte anos
depois, eu a encontrei. A canção que minha memória resguardou por tanto tempo
me veio, finalmente, em tarde fria de junho. Eu fazia pesquisa sobre o tema do
amor, para uma palestra, e, na tentativa de ouvir canções agradáveis durante a
organização do material a ser explanado, a encontrei – a internet tem seus pontos positivos. Eu a escutei à exaustão. Não
sou mais o menino de catorze anos que a contemplava sem qualquer consciência de
si mesmo e tão cheio de medos. Agora, tenho algum relance de vida, já sei me
defender, ainda que pouco. Não sofro tanto, não vivo de sombras, não desejo que
me venha o fim capaz de me salvar de mim mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário