Escrito
ao mesmo tempo em que o livro A hora da
estrela, que foi publicado em 1977 – ano em Clarice Lispector faleceu –, Um sopro de vida (Pulsações) está
dividido em três partes: 1) O sonho
acordado é que é a realidade, 2) Como
tornar tudo um sonho acordado? e 3) Livro
de Ângela.
Um sopro de vida
foi apresentado ao público em 1978, em publicação póstuma, e traz à tona, assim
como em A hora da estrela, a relação
entre um autor (desta feita, não nomeado) e sua personagem (cujo nome já havia
aparecido no conto A partida de trem).
Na
epígrafe do livro, dispomos de citações do Antigo
Testamento, no caso o livro de Gênesis.
Também deparamo-nos com citações de Nietzsche, de Andréa Azulay e da própria
Clarice Lispector.
Em
seu primeiro parágrafo, o autor (1999, p. 13) – instância narrativa criada por
Clarice Lispector – elabora uma espécie de prefácio em que aponta as direções a
que acorrerá ao longo de sua escrita: “ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de ave
de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto do morto”. Em seguida, em
sua explanação sobre o ato de escrever, que nos remete ao tom metalinguístico
recorrente na obra de Clarice Lispector, e também de intensa perscrutação, o
autor (1999, p. 15) afirma:
Tenho medo de escrever. É tão perigoso.
Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à
tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para
escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo
intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue.
Ângela
Pralini é apresentada já nesse suposto prefácio. O autor (1999, p. 19) diz:
“Escolhi a mim e ao meu personagem – Ângela Pralini – e para que talvez através
de nós eu possa entender essa falta de definição da vida”.
A
propósito, surgem intensas especulações existenciais tão ao estilo de Clarice
Lispector. Palavras como vida, morte, liberdade, felicidade, verdade, mentira e
realidade vêm à tona e tomam maior proporção à medida que o autor passa a
discorrer sobre sua escrita e sobre a criação de sua personagem.
Neste
sentido, na primeira parte é possível observar que o autor, bem aos moldes do
texto teatral, coloca o nome Ângela em destaque e elabora algumas informações
sobre ela – o que é atípico é que, embora tratando-se da descrição de uma
personagem ficcional, o autor a apresenta a partir de seu comprimento, largura,
profundidade sempre relacionando-a consigo mesmo. Em seguida, ele (1999, p. 27)
explica como a concebeu: “TIVE UM SONHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que
brincava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas
refletia uma outra pessoa que não eu”.
Daí
em diante, o autor elabora suas explanações até que resolve dar voz à Ângela
que, mais uma vez, como percebemos nos textos teatrais, tem seu discurso
enunciado a partir da indicação de seu nome que surge, concomitantemente ao
nome do autor, em caixa alta.
Este
recurso, que também nos remete ao estilo dos textos filosóficos de Platão, em
que suas ideias são apresentadas a partir de diálogos, faz com que percebamos a
personagem se descortinar de modo gradativo até que, libertando-se das
limitações impostas pela visão do autor, ela ganha voz e, consequentemente, seu
próprio livro. Temos, com isso, uma reflexão sobre a condição da personagem que
chega a tão alto grau de intensidade interior que ultrapassa os limites da
visão do autor que a engendra.
Segue-se,
na segunda parte, que é a mais curta do livro, e sempre com ênfase na
especulação metalinguística, uma reflexão do autor sobre o quanto poderia ser
grandioso, para seu livro, se ele fosse capaz de criar acontecimentos que
representassem um “estrondo” ou, como subentendemos, um clímax que desse ao
texto status de narrativa aos moldes
tradicionais. O autor discorre sobre a necessidade de tais acontecimentos, no
entanto não faz concessões às exigências que estabelece para si mesmo: sua
criação segue transgredindo os ditames estipulados, provavelmente, por concepções
mais tradicionais sobre a narrativa e seus componentes.
Na
terceira parte, intitulada O Livro de
Ângela, deparamo-nos com a ‘criação da criação’, uma vez que o autor perde
o controle sobre sua personagem e ela passa a construir sua narrativa ou, como
ela denomina, seu “romance das coisas”. De fato, ela desenvolve uma espécie de
catalogação de coisas, de objetos que a instigam, que a desafiam – ocasião em
que ela, numa curiosa retomada de textos anteriores, menciona textos como O ovo e a galinha e Sveglia. Ressalte-se, nesse jogo catalográfico, a explanação sobre
joias, que vai desde a observação liricamente construída sobre pedras preciosas
até a elevação do caco de vidro, que ganha status
e é colocado ao lado das joias. Poltrona, relógio, vitrola, casa, borboleta,
carro, lata de lixo, dentre outros, são algumas das “coisas” sobre as quais ela
discorre para, mais adiante, fazer emergir temas universais que tornam sua
reflexão uma incursão filosófica de amplas proporções.
Ao
fim, Ângela traz à tona, dentre outros temas, dois dos mais intensos: a morte e
Deus. Sobre a morte, dentre outras especulações neste sentido, ela afirma (1999,
p. 128): “Às vezes, só para me sentir vivendo, penso na morte”. E ela elabora
questionamentos metafísicos quando se indaga (1999, p. 128): “Será que depois
da morte começa a abstração?”
Quanto
a Deus, ela diz em dois momentos, na tentativa de defini-lo, que (1999, p.
128): “Deus não é o princípio e não é o fim. É sempre o meio” e “Deus é como
ouvir música: repleta o ser”. Inúmeras reflexões sobre Deus se seguem a esta, a
ponto de Ângela realizar, em momento de intenso lirismo na obra, uma oração:
Meu Deus, me dê coragem de viver
trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê
a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a
Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com
este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha
alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha
solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se
estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
(LISPECTOR,
1999, p. 151 – 152)
REFERÊNCIAS:
LISPECTOR,
Clarice. Um sopro de vida (Pulsações).
Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Perfeito!
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