“As rãs
virão sobre ti, sobre teu povo”. (Êxodo 8: 4)
Nuvens de chumbo ocultam o crepúsculo.
Obscurecida praça. Quantas almas podem perecer com o dilúvio que se forma?
Nas sombras da
praça tomou forma um vulto que procurou um banco e sentou-se. Era um homem de
longa barba, sórdido aspecto. Na ignorância de ser, ele trazia nas mãos um saco
tão encardido quanto sua roupa. O muito perambular pelas ruas da cidade
rendera-lhe pouco dinheiro naquele dia. Cansado, e com previsão de chuva,
passeou a mão no rosto, deixou-a cair. O braço esquerdo estava enrolado em
amarelecido pano que purpúrea ferida, de purulentas bordas, ocultava. Era
partícipe do clã dos mendigos aos milhões que, em nação desumana, sequer são
percebidos como seres capazes de alguma humanidade. Trazia embrulhada em sua
mendicância o desejo de ser um grande homem – com que ineficácia movia-se pela
existência. O homem-mendigo-fatigado-impotente encostou o encardido corpo no
banco da praça e tentou descansar. Quem o discriminaria por tentar repousar seu
lúgubre mundo naquela obscura praça? Com olhos que desciam ao chão suspirou.
Surgiu nas
sombras outro vulto que aos poucos tomou forma. Procurou um banco, sentou-se.
Era uma mulher em corpo de homem, ou era um homem em corpo de mulher? Vestido
vermelho, salto alto, bolsa na mão, imensos seios que loiros cabelos cobriam.
Tinha cílios postiços, forte maquiagem, anéis e cordões prateados. Tinha unhas
avermelhadas e longas. Ao sentar-se, respirou profundamente. Por vezes foi,
aquele ser artificialmente construído, objeto de uso de vários homens. De tanto
lutar contra a suposta natureza que lhe determinara o sexo, fatigadx estava.
Não escolhera. Agora, sentadx em praça obscurecida, não suportava mais o peso
que a solidão pode proporcionar aos transgressores da terra. Olhava para si
mesmx e sentia-se num cárcere. Era uma mulher, desde sempre, mas estava presx
por indevassáveis grades. Segurando com força as grades, gritando com
veemência, percebia-se mulher, mas quem teria compaixão de tirá-lx daquele
corpo que não lhe pertencia? Até quando carregaria sua letra escarlate? A voz paterna. De tempos em tempos, irrompia a voz
paterna e o flagrante: o amigo da escola estava despido em seu quarto quando o pai
entrou. Retirou o sexo do amigo da boca e balbuciou pedidos de desculpa. O pai
arrastou-x pelos cabelos, esbofeteou seu rosto, tirou sangue de suas costas, em
seu pescoço pisou, em seu corpo frágil de meninx desnorteadx cuspiu. E a dor
maior: “Em minha casa aberração não quero!” Frias podem ser as avenidas.
Naquele instante, no entanto, queria ter querido outro querer. Não
arrependimento, porém queria ter podido optar. A cabeça baixou. Mãos cruzadas.
Permaneceu na praça com sua desenhada face.
Outro vulto
surgiu. Procurou hesitante um banco e sentou-se. Uma moça de saia longa e
preta, óculos, cabelos presos, nas mãos um livro, pés em baixa sandália. Gorda.
Sentada, contra o peito apertou o livro. Queria, num aperto, morrer – para
sempre morrer. Queria nunca mais para casa retornar (engástulo, jaula, cárcere,
gaiola, cela, cadeia, masmorra, calabouço, prisão, túmulo). Libertar-se de si
mesma queria: morrer seria pleno. Sentia-se feia, pelo mundo rejeitada.
Detestava os olhares alheios. Quis, na penumbra, chorar. Lispector nas mãos – o
marcador na página em que constava A
fuga. E se dieta fizesse? Uma professora de trinta anos e feia e pobre e
gorda e míope ainda poderia encontrar o amor? Deus cria os bonitos para que os
feios sofram e assim paguem, com a sensação de inferioridade, seus muitos
pecados? Sentia o mundo como uma pancada ocular sobre seu muito corpo.
Melancolia intermitente invadiu-a. Tateou em si a culpa por sentir-se a mais
feia do mundo e permaneceu, arfante, com seu pesar morando ao lado.
Mas vai chover. Árvores dançam sob o vento.
Das águas vêm punhais prateados que almejam perfurar desamparados olhos. Quanto
à chuva, ela cai torrencialmente.
O mendigo
poderia erguer-se e ir-se embora. Decidiu, no entanto, permanecer. O corpo,
gradativamente, ensopava-se de uma chuva tão fria quanto cortante. Era, o
mendigo, na ânsia de limpar-se das sujeiras do corpo, um homem em busca de
apenas ser. Era fênix ressurgida da poeira das ruas e calçadas. A chuva, austera
e barulhenta e intensa, carregava cansaços e angústias. E ele, por alguns
segundos, não se sentia mais homem das ruas. Não, o que poderia haver de
mendicância em si acabava de descer nas águas. Curada a ferida, vermelhidão e
pus não mais.
Ela-ele poderia ter
fugido da chuva, ter protegido a maquiagem. Poderia cobrir com as mãos o rosto
e proteger sua bolsa. Não quis fugir, dessa vez toleraria as pancadas. Ela-ele,
fênix maquiada, tiresiana das
avenidas, poderia ressurgir das cores do esmalte, do vermelho do batom, da
circunferência dos seios apertados no vestido curto? Poderia ser, dali para
sempre, a mulher que sempre quis? Poderia livrar-se, definitivamente, da
artificialidade da aparência, dos hormônios em cápsulas? Queria nunca ter
sentido do pai o ódio. Se mulher fosse, desde sempre, mas... Ela-ele decidiu,
portanto: deixaria o paterno olhar descer nas águas e seria, eternamente,
mulher. Sem culpa sem medo sem remorso sem dor: mulher seria. Ela permaneceu sentada, vitoriosa, felicíssima, imersa em profundas águas de uma
chuva que eriçava a pele. Não teria mais avenidas a percorrer com sonolência e
medo.
A moça que se
achava a mais feia e gorda e míope do mundo deixou o livro molhar-se. Abriu as
páginas com desprendimento e contemplou, estática, as personagens de Lispector
descerem nas águas. Ocorreu-lhe que, se naquele dilúvio não estivesse, estaria
deitada, muito limpa, pensando nas discriminações vividas durante o dia. A cama
seria aconchegante, porém o frio da chuva, naquele instante, era-lhe um oásis.
Olhou-se nas gotículas de chuva que se aglomeravam em suas lentes, depois a
chuva levou-as. Sem óculos, sentiu-se livre. A partir dali não precisaria
enxergar o mundo. A necessidade de lecionar, a angústia de ser sozinha, o
anseio de morrer, tudo estava água abaixo descendo. Agora, era uma ave fênix
ressurgida das letras de uma página que poderia ser reescrita, pois, num
súbito, nova mulher se fazia. O dilúvio retirava seus medos aos pares e
ordenava-os numa arca que não se abriria jamais. Permaneceu sentada enquanto a
chuva tateava-a com orgia e frivolidade.
Eu já posso
chorar, pois na chuva as lágrimas ficam imperceptíveis. Sem julgamentos, meus
olhos podem finalmente deslizar em águas. Eu já posso chorar, eu já posso
nascer! – Foi o que disseram para si mesmos.
Quando cessar o dilúvio – será necessário
repovoar o mundo. Todos esperarão um ramo que lhes absolva e redistribua
vida.
Cílios,
maquiagem, unhas postiças, batom, molhados cabelos. Ela, na penumbra, para
o mendigo olhou e refletiu: “Mais um cliente que quer me usar por dinheiro
pouco, mas hoje não sou de ninguém mais!” Ao mesmo tempo, olhou para a mulher
que estava sentada a certa distância – não a tinha percebido ali. Aquela sim
era satisfeita com a vida, ganhou um corpo que sua alma conseguia comportar. Já
a moça gorda viu uma mulher jovem e de seios extravagantes num dos bancos à
frente e pensou: “Aquela moça a felicidade é: com tão perfeito corpo, que
sofrimentos enfrentaria?” O mendigo olhou para as moças e sentiu vergonha de
que elas percebessem sua ferida. Era intenso o silêncio que os engolia. Gritos
aos arroubos, íntimos, denunciavam a miséria existencial que os aprisionava.
Tentaram fugir uns dos outros – talvez não suportassem o fato de que a água da
chuva os tinha exposto demais. Tentaram, de repente, fugir como quem sente medo
de ser, por impiedosos predadores, devorado.
Os três,
molhados e sob uma chuva que recomeçava, ergueram-se de súbito. Estavam vivos,
embora encharcados. Estavam vivos, embora incertos. Saíram ao mesmo tempo de
seus respectivos bancos, porém ficaram estupefatos: as gotículas de água da
chuva transformavam-se em rãs e sapos que, com barulho, caíam no chão. Imensos,
sangrando, abertos olhos, bocas abertas, rãs e sapos. Vísceras expostas, e
corpos alquebrados na queda, eles interditaram todas as saídas.
A tríade marchou
enfrentando bilhões de anfíbios agonizantes na obscurecida praça. O mendigo
apertou o passo intimidado pela mulher que se equilibrava no salto, e mulher
que sentia inveja da mulher gorda que tentava andar sem óculos e que, com destreza,
pulava os animais empoçados. A chuva na praça caía sem cessar – contra o chão,
novos anuros. Depois, cessou a chuva e a estiagem, para sempre, carregou os
três seres ressurgidos das águas.
E o mundo nunca
mais foi o mesmo.
REFERÊNCIA
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento.
Ressurreição na chuva. In: Breve
estudo sobre corações endurecidos. Maricá
- RJ: Ponto da Cultura, 2011.
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