GOUVEIA,
Arturo. Décimas a galope. João Pessoa: Ideia, 2017.
Após apresentar ao público seu romance Canibalismo de Outono (2016), Arturo
Gouveia percorre outros caminhos em sua produção artística. O autor
apresenta-nos, agora, seu livro Décimas a
galope (2017), publicado pela Editora
Ideia, e mostra que sua maestria não se restringe apenas à produção de
textos em prosa, pois sua poesia, entre lírica e irreverente, também comprova seu
notável talento com as palavras.
Ao dizer que sua poesia é o ousado fruto
de sua “infantilidade poética”, o que o leva a sentir-se “salvaguardado” dos
críticos, Gouveia não tem dimensão, talvez, do quanto foi pertinente ter se
metido na tradição dos poetas e cantadores que circula pelo Nordeste com seus
folhetos de cordel e cancioneiros que muito resguardam do que há de mais
valorativo em nossa cultura.
Em Décimas a galope, o autor apresenta-nos nove poemas decassílabos a
partir de motes entre cômicos e líricos. A preocupação formal quanto ao
atendimento ao metro, à sonoridade e à rima é recorrente – isto resultou num
trabalho de grande precisão técnica perceptível em todos os poemas.
Passando para o conteúdo do livro, o
primeiro poema é realizado a partir do mote: “NO SERTÃO O CREPUSCLO É TÃO
BONITO, / QUE JESUS SE DEBRUÇA PARA OLHAR”. Como o poeta explica, este mote é
de autoria não definida e apresenta algumas variações, de modo que ele o
retomou criando, dessa forma, um dos mais comoventes poemas do livro. A
primeira estrofe expõe o sertão com tons entre melancólicos e belos: se por
um lado “o Sol se despede do sertão / E enlamaça de cores o horizonte”, com
seus tons de melancolia, por outro lado, cria-se uma imagem de intensa beleza:
“Entre a Terra e o Céu fica uma ponte / Que transita entre a luz e a
escuridão”. Grilos com seus tilintares e crianças a brincar compõem o lírico
cenário sertanejo – e o “Supremo se ergue no Infinito”.
Em versos como: “Cusparadas de luzes
verticais”, “Os morcegos decolam em transversais”, “Os miolos do Céu são
dissipados”, “A cratera da noite engole o mundo”, “Vagalumes começam a parir”, localizamos
imagens que se inserem na linha da produção artística do autor que, pelo que
analisamos de suas obras anteriores, prima pela criação de imagens grotescas e violentas,
mas não menos poéticas. Neste caso, ele capta a aspereza do sertão que remete à
sobrevivência, por vezes, em meio à escassez e à austeridade da vida, apesar de
permear seus versos com imagens que nos remetem à apreciação de cenários de
beleza inconteste.
Do grotesco, do sombrio, do áspero saem lampejos de
vida, de singeleza e, também, de esperança – por que não? A simbologia do
crepúsculo, que poderia remeter ao fim do dia / fim da vida, é de tal modo
detentor de beleza imagética que o próprio Criador se surpreende: “Mesmo Autor
de incontáveis perfeições, / A tardinha a Jesus é u’a surpresa”. O Criador
torna-se cúmplice do sertanejo na contemplação do cenário.
O segundo poema se desenvolve a
partir do mote: “SEM TALENTO NENHUM PARA IMPROVISO, PELO MENOS ESCREVO MEU
MARTELO”. Em tom marcadamente metalinguístico, o poeta retoma os valores
artísticos do repentista e do cantador e propõe um duelo, desta feita não por
meio do improviso, tão ao gosto dos artistas populares, mas por meio da
escrita. Com isto, ele cria versos como:
É na escrita que as rimas são complexas,
Proparó, oquici, faço o que quero,
Pode o mundo pensar que é lero-lero,
Porém mágicas letras vão anexas.
Seja aqui, em Dubai, Berlim, no Texas,
Linhas mestras se agrupam elo a elo,
Frase a frase o impáquito é tão belo,
Que abrange o perfeito e o impreciso
Sem talento nenhum para improviso,
Pelo menos escrevo meu martelo.
Palavras como “proparoxítona” (proparó / oquici) e
“impacto” (impáquito) saem da usualidade e, criativamente, são reconfiguradas –
saudosismo da herança dos modernistas da denominada fase heroica, ou deboche
bem articulado que não hesita em fugir de preciosismos, e que, se obedece às
nuanças formais do poema, burla as regras da linguagem?
As regras da linguagem são burladas também em
expressões neologísticas como: “vamagora”, “pirrai” e “inda”. No mesmo poema em
que tais palavras são concebidas, surge um verso, ao estilo Augusto dos Anjos,
que apresenta um decassílabo formado apenas por duas palavras:
“Imponderabilíssimos versículos”.
Em seguida, no terceiro poema, que poderia ser
subintitulado como ‘catálogo do absurdo’, deparamo-nos com o sarcasmo já
evidenciado no poema anterior, mas que neste vai às últimas consequências. A
concepção de arte contemporânea e a noção de pós-modernidade são alvo do
escarnecimento da voz lírica do poema. Uma espécie de jorro de palavras, que
nos aproxima das propostas artísticas de algumas vanguardas europeias, como o
dadaísmo (Marcel Duchamp é citado duas vezes) e o surrealismo, vem à tona.
O absurdo prepondera na imagética do poema, como
podermos constatar em sua última estrofe, ocasião em que a voz lírica tece
contundente crítica a certas concepções artísticas pouco comprometidas com a
singularidade estética:
Para a arte atingir seu esplendor,
Deve ser tão banal quanto o insólito:
Uma foto de Hipólita e de Hipólito
E um casal de embuá fazendo amor.
Sutiãs de Nabucodonosor
Num pedófilo amando um general,
Mil goteiras de baba vaginal
Inundando de urânio Fukushima
- Instalei a mais célebre obra-prima
Que arrasou nos salões da Bienal.
No quarto poema, o autor retoma um dos mais
extraordinários contos da literatura nacional: A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. A saga de Nhô
Augusto, homem austero que passa por uma mudança vertiginosa em sua vida após
um episódio de quase morte, é retomada. Seja pela bem delineada reconstrução da
enredística do conto, seja pela linguagem que retoma, em vários aspectos, o
estilo do autor mineiro, este poema consegue nos aproximar do universo lírico de
Guimarães Rosa, como no trecho em que é narrada a viagem de Augusto Matraga em
busca das terras do Rala-coco:
Despediu-se do povo e foi sem rumo
Encontrar sua vez e sua hora,
Deparou com o solzão, lonjão, lá fora,
Vomitando relâmpagos sem prumo.
Sem bebida, pecado ou mesmo fumo,
Viajou no jumento com ardor.
Não sabia a distância por transpor,
Mas a fé feita em Deus nunca se indaga
- O maior dos Augustos, o Matraga,
Ascendeu de maldito a redentor.
No quinto poema, mesclam-se ficção e realidade. Nos primeiros
versos, a voz lírica sugere que teve uma conversa com Riobaldo, ao mesmo tempo
em que é retomada a figura de Zé Limeira que, supostamente, teria morado em um
convento. Surge nele algumas figuras desde o Saci, do folclore brasileiro, a
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Além disso, há menção a pessoas reais do
universo das artes – Pablo Picasso, Piet Mondrian, Salvador Dalí, Carlos Drummond
de Andrade, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe e Procópio e Bibi Ferreira, dentre
outros. A intertextualidade é nítida em trechos como: “O abiççurdo, cubista ou
expressionista, / Tá na fala tubi or no tubi. / Elsenor é o palácio de Geni...”
Além da retomada das Vanguardas Europeias, no trecho há alusões a Hamlet, de Shakespeare, a Geni e o zepelim, de Chico Buarque, passando
pelo Movimento Antropofágico, proposto por Oswald de Andrade. Percebemos isto, também, na
menção a Augusto dos Anjos presente no verso: “Tem poeta que numa boca
escarra, / Tem quem viva esperando o Jabuti...”
No poema seguinte, Zé Limeira reaparece, desta feita
a convite da voz lírica que afirma tê-lo convidado e ele ter trazido Moreira e
Juliano. A formalidade da linguagem é alternada com a linguagem coloquial que
se adéqua ao tom irreverente, absurdo e nonsense
do poema. Assim como subintitulamos o terceiro poema como ‘catálogo do absurdo’,
o sexto poema poderia ser subintitulado como o “catálogo da loucura”.
Os poemas posteriores, que são marcadamente
humorísticos: o primeiro (PEGUE A LÍNGUA DA SUA SOGRA MORTA / E ELOGIE COM AMOR
EM DOIS VELÓRIOS), que se remete à imagem popularmente considerada como detestável
da sogra, a homenageia ao contrário, apresentando-a com tons caricaturais e
jocosos; o segundo (QUANDO EU ERA PIRRAI VOVÓ DIZIA / QUE MEU ROSTO ERA A CARA
DE UM PIPIU), galhofeiro e obsceno, apresenta os mesmos tons caricaturais do
poema sobre a sogra.
Esses poemas são cômicos, apresentam inovações do
ponto de vista da linguagem – como exemplo, consideremos os termos “pralutakismariu”,
“Zé-Mezera” e “bimbim” – e são criativos ao extremo. Para ilustrar a
criatividade com que a voz lírica manipula os componentes do humor que os
tornam textos irreverentes e galhofeiros, além de marcadamente sarcásticos,
leiamos a seguinte estrofe:
Conta todo carimbo de um calção,
Sabe todo defeito dos ingratos,
Delatou Jesus Cristo pra Pilatos,
Entregou Galileu à Inquisição.
Não tem Bíblia, Odisseia nem Corão
Nem cardápio de uns trinta refeitórios
Que concorram com tanto palavrórios
Que a garganta do Cão fabrica e exporta
- Pegue a língua da sua sogra morta
E elogie com amor em dois velórios.
E, para concluir, o último poema pode
ser considerado um dos mais extraordinários do livro (trata-se da décima O MAIS
ALTO DEGRAU DA INTELIGÊNCIA / É SAIR PRA CAÇAR O POKEMÓN). Neste, um dos mais
críticos, sarcásticos e cômicos, deparamo-nos com a difundida prática do mundo
virtual: “caçar pokemón” que, na percepção sempre irônica da voz lírica, é
considerada uma ação totalmente contrária ao desenvolvimento cognitivo do
indivíduo. Nos versos seguintes, percebemos o teor sarcástico com que as palavras
são dispostas:
A
burrisse é negoçço de familha,
Não
têm erros na língua poquemônica:
Tanto
faiz candidato, bomba atônica,
Ou
cartasis ou rúbrica ou barguilha.
Os
40 ladrões lá em Brazilha
Açaltaro
Seu Jorje, urrei de Tlon.
Oge
vô se cobrir com o edredón
Só
se eu se abister da abstinênsia.
-
O mas auto degrau da inteligência
É
saí pra cassar o Pokemón.
Pelas estrofes que apresentamos,
podemos constatar que o novo livro de Arturo Gouveia é instigante, criativo e
formalmente irretocável. Consegue ser denso no manuseio dos aspectos
estruturais e inovador pela forma como a linguagem é apresentada. Por ser um artista
consciente da profundidade que uma palavra pode alcançar quando bem arquitetada,
ele consegue nos proporcionar uma leitura que nos amplia o olhar sobre cenários
e temas diversos, e, além disso, nos propicia momentos de leveza e diversão,
quando nos motiva a rir aturdidos pelos absurdos, pelas caricaturas e pelas irreverências
que emergem de seus versos sempre rigorosamente construídos.
O livro Décimas a galope é uma brincadeira séria que está longe de
configurar-se como fruto de uma “infantilidade poética”, a não ser que compreendamos
essa infantilidade como um gesto de desprendimento, ousadia, leveza e, de certo
modo, desobediência e rebeldia, ingredientes muito válidos para quem pensa o
fazer artístico como algo singular que, em suas especificidades, pode conduzir
seu apreciador às mais benéficas sensações e a novas perspectivas de apreciação
artística.
Émerson
Cardoso
04/10/2017
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