Eu, que não conseguia pensar em definições para a
felicidade, passei a utilizar a ideia proposta por Clóvis de Barros Filho em
algumas de suas aparições internéticas. No Provocações,
por exemplo, sendo entrevistado por Abujamra, ele sugeriu que a felicidade
acontece quando se realiza algo e deseja-se que este algo não acabe nunca.
Neste
sábado, pela manhã, iniciei a fatigante tarefa de limpar e organizar livros.
Meu problema é que demoro demais realizando esta tarefa, porque inevitavelmente
passo a ler trechos ou capítulos inteiros – fica impossível concluir
o trabalho a que me proponho em tempo hábil.
Enquanto
limpava os livros, devo dizer, fiquei tão angustiado a ponto de sentir dor
física. Quando eu morrer, e eu vou morrer mais dia menos dia, o que acontecerá
com meus livros, que constituem a única posse material que me causa medo de
perda? Depois que eu me for, quem será capaz de cuidar deles, ou utilizá-los,
com o mesmo devotamento a que eu estou fadado? Veio-me, com isto, medo de
morrer. Medo de ficar sem aquilo que constitui algo de relevante para mim sobre
a Terra. Medo e angústia. E se eu fosse embora hoje, por morte ou fuga? Como eu
poderia deixar para trás aquilo que me causa tanta satisfação? Sim, eu também
vejo nisto muito materialismo e dramaticidade. Parece-me doloroso que eu
consiga atribuir tanto valor sentimental a objetos e, por vezes, não conseguir
olhar com o mínimo de humanidade para alguns seres com os quais tenho que
conviver. É que os livros foram conquistados com sacrifício, e sabem falhar
menos.
Pensei,
em seguida, que amo livros porque amo Literatura. Pronto. Não amo livros – isto
me redime! –, amo a Literatura que eles podem me dar em grandes ou pequenas doses.
Eis, portanto, a relação com o que Clóvis de Barros Filho pensa sobre a
felicidade. Enquanto posso ler, informar-me, discutir e repassar algo sobre
Literatura eu me sinto vivo, eu me sinto feliz. Pensar que isto poderá cessar
um dia, por algum motivo, me amedronta. E, para tentar expressar este medo,
parei a arrumação dos livros, respirei um pouco e passei a escrever. Escrevi
para mim mesmo, claro. Ultimamente, nem os clássicos têm leitura garantida,
quanto mais os amadores!
Além
disso, alguém já me perguntou: o que a Literatura pode fazer de forma prática
para mudar o mundo que vive de misérias? Deus do céu! Não sei! Não sei, em
absoluto, o que dizer, o que responder. Eu poderia criar hipóteses, reproduzir
o que foi dito por muita gente, mas sequer tenho forças para isto. Eu, e digo
isto com tristeza, não sei se resolvi ou resolverei com meu amor à Literatura a
miséria do mundo ou de alguém que nele habita. Primeiro, que sou herói do romantismo da desilusão – de tanto
pensar, não ajo. Segundo, que, dos miseráveis, sou o que mais precisa: minha
mão estendida criou raízes. O que peço? Peço humildade, leveza e amor – amor
numa perspectiva cristã, se me permite exibir minha tendência a tudo explicar,
que é minha neurose de guerra por excelência.
Felicidade,
para mim, portanto, seria o mesmo que disse Clóvis de Barros Filho. Eu queria
tanto ter acesso à Literatura hoje e sempre, queria tanto passar a eternidade
com ela, que pensar no fim disso me dói. Talvez eu esteja angustiado mesmo porque
ontem, enquanto esperava ser atendido em consultório médico, reli a primeira
parte de Memórias do subsolo, de
Dostoiévski, ou porque parei a arrumação dos livros quando toquei A paixão segundo G. H., de Clarice
Lispector, e achei por bem reler uns trechos e, num fôlego só, terminei lendo
quase o livro inteiro.
Devo
voltar à arrumação. Escrever não me organizará a vida, nem me dará a eternidade
que me possibilitaria viver de, para e com meus livros. Mas, para concluir, a
propósito da pergunta que me fizeram sobre o que a Literatura pode fazer contra
as misérias do mundo, eu devo dizer que ela pode não fazer muito pelo caos
mundial criado pelo homem, e sua tendência ao mal, mas ela fez muito por mim,
ao que sou grato. Por pura gratidão, devo propagá-la. Não é assim que devemos
fazer com quem nos prestou alguma solidariedade?
Émerson Cardoso
23/12/2017
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