domingo, 15 de março de 2020

IMPRESSÕES PASSIONAIS SOBRE O ROMANCE "FRANKENSTEIN", DE MARY SHELLEY



Não existem súplicas que o levem a ter um olhar favorável para a sua criatura, Frankenstein: eu era benevolente, minha alma brilhava de humanidade. Veja: eu não estou só, desgraçadamente só? Você, meu criador, me abomina.                        (SHELLEY, 2019, p. 104)


Concluí a leitura do romance "Frankenstein", de Mary Shelley. Nele, uma narrativa comporta outra narrativa que comporta outra narrativa. As personagens são densas, amplas e instigantes. Talvez tenha sido a maior experiência de solidão que já vi personagens vivenciarem em uma narrativa. Seja a solidão autoimposta de Victor Frankenstein, seja a solidão inevitável do Ser (eu prefiro denominá-lo assim) criado pelo cientista, poucas obras conseguem delinear tão profunda e liricamente esse tema que me é tão caro. 

Vou ser sincero, lamentei pelas perdas vividas por Victor Frankenstein, mas minha comoção foi direcionada profundamente ao Ser, pois ele não pediu para existir e, mal foi colocado no mundo, teve que engolir o abandono e a inaceitação. O vazio foi sua condição existencial por excelência. 

O que poderia ter sido encontro afetivo ou de cumplicidade entre criador e criatura, torna-se, em "Frankenstein", um desencontro catastrófico. Victor Frankenstein não traz para si o compromisso de acolher o Ser que nasce de sua ambição cientificista nada preocupada com a ética e as consequências de sua arrogância e autossuficiência. Essa atitude me faz querer perguntar: se não tinha capacidade de comprometer-se com as consequências de seus atos, por que foi adiante? Por que criar ou dar vida a alguém que não se pode acolher? Se não é capaz de arcar com as responsabilidades de um ato, por que realizar tal ato?

A solidão de Victor, cego pelo poder e pela vaidade de criar algo que ninguém havia criado, de ultrapassar as barreiras da morte e dela tirar a vida, é doentia. A solidão do Ser, que se entrincheira no desejo cego de vingar-se daquele que o engendrou e o desamparou, é doentia. O primeiro vive, como dissemos, a solidão por escolha, isto é, autoimposta. O segundo vive a solidão irremediável, isto é, aquela que é engolida com angústia e com a impotência de não poder revertê-la. Penso, no entanto, que eles se irmanam, de certo modo, no sofrimento que colhem em suas respectivas solidões.

Victor Frankenstein paga um alto preço por sua passionalidade, por sua ambição de querer saber demais. O Ser, por sua vez, perdido, incompreendido e deprezado, encontra uma via tenebrosa como subterfúgio e termina por espargir sobre inocentes o ódio resultante da solidão a que é submetido. Ambos são vítimas, claro, mas Victor Frankenstein é mais monstruoso. Ele não olha com humanidade para sua criatura - só lhe dá espaço para sua narrativa quando se sente acuado e, egoísta que é, só decide dar-lhe uma companheira para poder livrar-se dele. O problema é que, além de egoísta, Victor Frankenstein não tem força moral de cumprir uma promessa. Ele tem um álibi para não cumpri-la, mas ela não me convence: ele pensa que, se criar uma companheira para o Ser, que ele denomina a partir dos piores epítetos, como ter certeza se a humanidade poderia sobreviver a essa dupla? Se pensava tanto na humanidade, e temia que algo desse errado a ponto de comprometê-la em sua integridade, por que não pensou nisso antes, hein, Victor Frankenstein?

O Ser é odiado, menosprezado, visto como algo terrífico e grotesco por seu criador e pelas outras pessoas, como suportar algo assim sem dar respostas? Ele termina por arrefecer sua dor fazendo doer àquele que lhe proporciona uma existência amarga e infeliz. Não penso que o mal que alguém causa ao outro deve ser vingado, sobretudo de modo tão violento, mas o Ser apenas reagiu às ações monstruosas de seu criador e das pessoas do mundo pouco afeitas a aceitar o "outro" em suas singularidades.

Deve haver quem olhe para Victor Frankenstein compassivamente, claro, afinal ele perde os seres que mais ama - muita gente inocente paga por um erro que jamais cometeu. Eu, no entanto, olho para o Ser com maior empatia, pois ele, embora se transforme em um assassino implacável, traz em si tanta dor, sentimento de rejeição, carência afetiva, medo, desespero e, sobretudo, solidão que não tenho como não me solidarizar. Ele poderia ter sido melhor cuidado por aquele que o idealizou, por que isso não aconteceu? O mal nasce, por vezes, como resposta vingativa a uma maldade anteriormente direcionada a alguém.

Enfim, ainda envolto na atmosfera gótica desse romance escrito por uma mulher extraordinária, devo dizer, após esses comentários passionais que constituem um amontoado de impressões sem pretensão de análise, que "Frankenstein", de Mary Shelley, é um dos livros mais profundos, belos e instigantes que eu já li. Poucas vezes a solidão (palavra mais linda da língua portuguesa) conseguiu ser tão bem retratada em uma obra literária. Que privilégio ter existido para ler essa obra!


REFERÊNCIA 

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução de Silvio Antunha. Jandira, SP: Principis, 2019. 

Émerson Cardoso
15/03/2020 



4 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado pela leitura! Em verdade, é um texto simples, de impressão de leitura, mas gostaria de desenvolver um texto mais amplo sobre a obra de Mary Shelley! Abraço!

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  2. Muito bom! Você escreve divinamente.
    Quanto ao Frankestein, esta é uma leitura que estou me devendo.
    Toda vez digo que vou comprar o livro e não compro.
    Vi, em algum lugar, que a criatura era uma representação da própria Mary Shelley. Se puder, veja o filme sobre ela que está na Netflix.
    Abraços, querido!

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    1. Obrigado, Sara! Tenho certeza de que você gostará desse romance! Eu assisti ao filme sobre Mary Shelley e gostei muito! Obrigado pela dica!

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