domingo, 2 de agosto de 2020

QUANDO A QUARENTENA AUMENTA A LOUCURA NOSSA JÁ EXISTENTE


Se eu pudesse fabular sobre como seria o meu post mortem, eu iria para o Céu, claro. Eu seria conduzido até lá sem dor - obviamente que morreria dormindo ou sob efeito de anestesia geral. Ao deslocar-me ao Céu, sentiria apenas leveza e paz. 

Se eu pudesse fabular sobre como seria o Céu, eu chegaria com alegria imensa a um lugar tão cheio de paz e luz que o identificaria imediatamente como o Paraíso no qual Deus me aguardaria. À porta do Céu, esperando-me, estariam anjos tocando e cantando Rain and tears (é a canção em língua inglesa que mais amo nesta vida). Eu iria chorar sem problema algum - na Terra fui incapaz de chorar diante de pessoas, mas livre de mim mesmo, e de todas as amarras, eu choraria sem conflitos. 

Após a canção ser tocada, eu entraria acompanhado por um anjo que me apresentaria a São Pedro, o Porteiro do Céu, que me daria algumas instruções: "Aqui, finalmente, não te sentirás mais abandonado ou deslocado ou exilado como te sentiste enquanto estavas na Terra! Podes entrar!"

Mercedes Sosa estava cantando Cuando tengo la tierra, ao lado de alguns grandes cantores e cantoras da América Latina, apenas para recordar o quanto a luta por um espaço na Terra era um desafio para nós pobres. E ela riu para mim, com o olhar intenso, dizendo que estava grata por eu tê-la amado tanto! 

Edith Piaf, agora ridente, esperava-me logo à frente para me dar um abraço! Encontrar Mercedes Sosa e Edith Piaf em questão de minutos no Céu me deixou enlevado. À frente, também com desejos de abraço, Demis Roussos, que me possibilitou a canção que me foi tocada pelos anjos por ocasião de minha entrada, sorriu para mim. Três almas grandiosas me receberam em minha chegada, Deus, eu merecia tanto?

Foi quando ouvi alguém gritar meu nome...

Minha avó paterna, D. Fransquinha, e minha bisavó materna, D. Maria Raquel, estavam sentadas, juntas, esperando por mim em um banco iluminado que ficava em um jardim próximo a um regato. Quanto verde e quanta diversidade de cores nas flores e rosas que por ali pairavam! Ao encontrá-las, foi imenso o abraço! Ficamos horas conversando sobre os familiares que ficaram na Terra, e como eles lidaram com a ausência delas. 

Enquanto conversávamos, Luiz Gonzaga, numa das melhores interpretações da vida, começou a cantar Asa Branca para comemorar meu encontro com minha avó e minha bisavó. As notas dançavam em nosso derredor e as flores riam. Pedi a Luiz Gonzaga, após abraçá-lo, que cantasse e tocasse A triste partida. Ele me atendeu em meu pedido - o Nordeste, que tanto me moldou como ser humano, me veio inteiro em sua capacidade criadora e resistente! 

Minhas avós me conduziram, depois, para um prédio no qual eu deveria entrar sozinho. Elas disseram que nos reencontraríamos em breve. Assim que entrei, vi que estavam sentados, com luzimentos indescritíveis, Santa Clara, São Francisco e Santo Antônio. Eles contavam histórias para um grupo de crianças e jovens. No grupo, vi Danúbia, minha prima que se foi tão jovem, muito envolvida com a história contada pelo Santo. Ela trazia nos cabelos estrelas reluzentes. Aproximei-me dela com timidez e a abracei. São Francisco, sorrindo com uma pureza impossível de imitação, percebeu-me logo. Ele levantou-se e abraçou-me: "Não queria tanto me conhecer, hein! O prazer é todo meu!" Santa Clara e Santo Antônio me abraçaram também! Fiquei suspenso no ar tamanha foi a alegria. 

Uma voz me chamou, polidamente, e São Francisco me orientou a segui-la. Era Santa Luzia que, com Santa Tereza D'Ávila e Santa Teresinha do Menino Jesus, queria me apresentar a Biblioteca Celeste. Mais abraços amorosos e pacificadores me foram dados por elas. Em seguida, feliz, andei pela Biblioteca. São João da Cruz declamava um poema - participava de um sarau com povos de todas as culturas que se preparavam para também declamarem seus respectivos poemas. O próximo seria São Benedito a quem, com discrição, para não atrapalhar o sarau, abracei amavelmente! Quando um poema está a ser declamado não se pode atrapalhar!

Decidi andar um pouco mais pela Biblioteca. Foi quando vi Miguel de Cervantes, Federico García Lorca e Gabriel García Marquez rindo de alguma anedota, sentados em almofadas coloridas. Quando me viram, levantaram-se, abraçaram-me e conduziram-me para uma sala. Lorca me disse: "Há umas figuras ali que esperam por ti!" Corri, curioso, para ver quem me esperava.  

Carolina Maria de Jesus recebeu-me à porta e, rindo, deu-me imenso abraço. Com ela, Antônio Callado, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Júlia Lopes de Almeida, Osman Lins, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Orides Fontela, Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Graciliano Ramos, Francisca Júlia, dentre outros e outras, estavam tomando chá. Eu amo chá e, curiosamente, todos sabiam disso. Havia uma xícara plena, para mim, e uma cadeira pronta para que eu me reunisse ao grupo. Conversamos durante horas, meses ou anos. O tempo conforme o conhecemos na Terra não funciona como no meu Céu.

Gustave Flaubert, depois, apareceu à porta e convidou-me a ir com ele para uma outra sala. Pedi licença aos meus compatriotas e saí. Ele me abraçou com barulho e levou-me a um sarau. Nele, Voltaire, Slvia Plath, Marguerite Yourcenar, Victor Hugo, Emile Zola, Virgínia Woolf, Guy de Maupassant, Emily Dickinson, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Violette Leduc, Katherine Mansfield, Emily Brontë, Jane Austen, William Shakespeare, dentre outros e outras, esperavam-me com crepes crocantes que eram servidos com uma boa quantidade de tomates regados a azeite e salpicados com orégano. Comi fartamente. Permaneci por horas, meses ou anos naquele espaço.

Depois, Salvador Dalí apareceu à porta e convidou-me para a sala de exposições. Ele e Gustave Doré apresentavam as imagens que desenvolveram sobre A Divina Comédia, de Dante. Dante, diga-se de passagem, fez questão de aparecer para me cumprimentar. Eu não consegui acreditar que seria possível, um dia, ver aquele ser capaz de construir algo tão perfeito querendo, de mim, um cumprimento! Abracei-o com desespero. Homero, Virgílio e Camões conversavam à frente e, rindo-se, também abriram os braços para um abraço fraterno!

Na saída, esperava-me Frida Kahlo. Ela me deu um abraço intenso, sugeriu que, na Bibiloteca, havia cinema de todas as nacionalidades, exposições diversas, concertos maravilhosos, peças teatrais grandiosas e uma sala-quarto só minha. Nela, estariam todos os livros que eu li e amei, e todos os livros que eu desejei ler e não pude ainda. Também estariam lá pinturas, obras cinematográficas, esculturas, músicas etc. Tudo o que faz pulsar meu coração estaria à minha espera. Ela disse, ainda, que eu deveria ficar tranquilo, porque as pessoas que eu mais amei ao longo da existência iriam me encontrar ali, sempre que eu quisesse, e eu também poderia visitar a sala-quarto das pessoas que me amavam quando me fosse feito o convite. Eu lhe perguntei, um tanto tímido, se no Céu a gente poderia encontrar o grande amor da vida. Ela ficou confusa e fez a seguinte pergunta: "Mas o amor da sua vida está na Terra, querido, vocês não se encontraram?" Silenciei. Ela se despediu com um bom álibi: iria para uma roda de conversas com Florbela Espanca, Agustina Bessa-Luís e Sophia de Mello Breyner. Eu estava convidado, caso quissesse ir.

Decidi ficar e sentar numa poltrona de belo designer que encontrei ao lado da cama. De repente, a canção Why worry deslizou na atmosfera. Posteriormente, Don't let me be misunderstood, na voz de Nina Simone, ecoou. Fiquei feliz e comovido. Havia muita coisa a fazer, muita arte e cultura a viver, mas me faltava algo. Uma voz me chamou à porta: era Santa Dulce dos pobres. Corri para abraçá-la. "Meu filho, você viu como a Biblioteca é maravilhosa? Aqui você será eternamente feliz! Antes de viver o que tanto deseja seu coração, no entanto, falta algo, não é!" Ela deve ter intuído, de algum modo, o que eu havia pensado. Saímos de mãos dadas: ela cheirando a rosas, e iluminando todos os espaços pelos quais passávamos, e eu expectante.

Já fora da Biblioteca, passamos por Maysa, Maria Callas, Dalva de Oliveira, Nina Simone, Ângela Maria, Miriam Makeba, Emilinha Borba, Cesária Évora, Carmem Miranda, Dolores Duran, Núbia Lafayete, Ella Fitzgerald, Dalida, Elis Regina, Nara Leão, Clara Nunes, dentre outras, que faziam apresentações com suas canções mais famosas. Quase cessei a marcha para ouvi-las, mas Santa Dulce me aconselhou que eu poderia voltar em outro momento, pois elas reuniam-se para cantar com frequência.

Seguindo Santa Dulce, percebi que ela cessou os passos maravilhada. Foi quando vimos, sentado perto de um riacho, revestido de luz, o ser que parecia me faltar. Era Jesus Cristo! Santa Dulce olhou para mim, apertando-me a mão, e disse: "Prepara-te, menino, agora a vida será preenchida tão completamente que tu não terás mais ausências no coração machucado que trazes da nossa sofrida Terra!" Jesus olhou-me com tanta singeleza, antes que se abrisse a um abraço enternecedor, e acolheu-me com amabilidade infinita. Seus negros braços, finalmente, alcançaram meu corpo ferido. E a vida fez-se plenitude e a paz sorriu para mim. Ao abraçá-lo, senti que três abraços, em um só, me revestiam da mais completa felicidade! Eu renasci!

Depois, Jesus segurou minha mão e convidou-me a ler as obras dos autores e das autoras brasileiras da contemporaneidade. Com um grupo irreverente, debatemos por três séculos peças teatrais, poemas e narrativas que o Brasil tem produzido nos últimos tempos. Fomos lendo os textos em forma de sarau. Dercy Gonçalves quase me matou de rir, com seu humor escrachado, quando decidiu fazer algumas leituras! Elke Maravilha, com riso eterno, declamou divinamente alguns poemas! Eva Todor declamou textos com seu riso e carisma insuperáveis! Depois, com o sarau finalizado, voltei com Santa Dulce para a minha sala-quarto.

A minha sala-quarto foi construída com inúmeras poltronas para os amigos. Em uma das paredes, com molduras prateadas, foram colocadas todas as fotos de minhas professoras e professores mais marcantes. Eu recebi visitas maravilhosas em minha eternidade, mas como o texto que escrevo já está longo demais, vou concluindo. Vou deitar na minha cama, sozinho, para ler um pouco. Depois da leitura, receberei meus escritores e escritoras e compositores e compositoras e cineastas e atores e atrizes preferidos. Quando saírem, receberei meus amigos e amigas e familiares tão queridos. Quando saírem, receberei os Santos e Santas de minha predileção. Posteriormente, assistirei bons filmes. Farei toda essa quantidade imensa, e perfeita, de coisas enquanto espero que o amor da minha vida, que anda pela Terra sem mim desde que nascemos (como Frida Kahlo me revelou), me chegue para que eu possa amar, também, nesta perspectiva do amor erótico. Como nunca soube lidar com isso estando na Terra, por isso terminei me acostumando com a solidão, quem sabe se no Céu eu não conseguiria  repensar meus modos e me permitir um pouco a esse tipo de amor! A culpa, no entanto, não foi minha: e eu lá sabia que no mundo havia alguém capaz de me amar e de merecer o meu amor!

Mas bateram na porta, agora, e meu sonho acordado desvaneceu.

Émerson Cardoso
22/06/2020

2 comentários:

  1. Lógico que gostei de tudo! Quanta riqueza de conhecimentos! Mas, não escondo q gostei muito mais do seu encontro com Jesus. Seu trabalho sempre admirável, professor! Perfeito!

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