segunda-feira, 26 de agosto de 2013

MEMORIAL - PRIMEIRO ENCONTRO COM A LEITURA...

O Memorial é uma espécie de autobiografia que descreve, analisa e critica acontecimentos sobre a trajetória acadêmico-profissional e intelectual de um indivíduo. Geralmente deve ser escrito com distribuição de seções que devem privilegiar tópicos específicos que o autor deseja destacar. O texto deve ser redigido em primeira pessoa, o que dará abertura para que este realize um texto marcadamente subjetivo em que suas impressões, dificuldades, reflexões, questionamentos e o percurso que o conduziu à aprendizagem devem ser expostos como se aparecessem numa página de diário. Caracteriza-se, também, como um método criativo de autoavaliação. Em alguns casos, dependendo da instituição de ensino em que o indivíduo estuda, o Memorial pode ser cobrado seguindo alguns padrões estipulados especificamente para a finalidade com que ele é realizado.



A LEITURA É UM ENCONTRO ÍNTIMO CONSIGO MESMO

Quando comecei a estudar fui logo para uma primeira série – não passei por um processo de alfabetização em séries específicas para esse tipo de ensino. Lembro-me de que, ao entrar na escola, no entanto, já dispunha de algumas informações que me possibilitaram aprender a ler poucos meses depois do início das aulas.
Na infância eu era, por opção, muito preso em mim mesmo, costumava ter sempre em mãos livros e cadernos velhos. E aprendi a ler, que acontecimento inexplicavelmente feliz de toda uma existência, com histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. Certa vez, sentado na calçada da minha avó, vi umas páginas rasgadas de uma revistinha da Turma da Mônica soltas a voar pela rua e, mais que depressa, corri e as peguei. Eram cenas de um velório da Turma do Penadinho – fiquei fascinado tanto pela revistinha quanto pelo cenário cemitérico até hoje! 
Tempos depois, uma vizinha me emprestou cinco revistinhas que foram adquiridas por meio de uma promoção dessas em que, para se obter um certo produto, é necessário juntar uma quantidade específica de tampinhas de refrigerante. Eu as folheei como se as lesse – embora ainda não soubesse ler. A minha angústia infantil: tive que devolvê-las e nunca mais, numa existência inteira, tive condições de reuni-las novamente. 
Na primeira série do ensino fundamental, para meu êxtase, uma das muitas professoras que tive ao longo do ano letivo levava revistas da Turma da Mônica para sala de aula. Ela as deixava sobre a mesa, estrategicamente, e quem se interessasse poderia pegá-las à vontade. Eu vivia, em sala de aula, com as revistinhas nas mãos mesmo sem conseguir ler.  Foi tão grande o desejo de entender a fala das personagens que não demorou e eu aprendi: realizei, portanto, minhas primeiras leituras com histórias em quadrinhos. Ler foi a mágica de existir em plena força: lia de tudo desesperadamente, exaustivamente, infatigavelmente.
Quando ainda não sabia ler, recordo-me de umas primas mais adiantadas nos estudos lendo a história de uns brinquedos que ganhavam vida na loja em que viviam – uma das personagens chamava-se Polichinelo. Eu ficava tão incomodado por ouvir as histórias sem que pudesse eu mesmo realizar a leitura. Nesse período, assisti a um filme de animação que, quando o trago à mente, vivencio a mesma sensação, hoje, que fora experimentada na infância. O filme era Dumbo  e me comoveu tanto! Meus desenhos animados favoritos, a propósito, eram Os cavaleiros do zodíaco, As aventuras de Tintim e Caverna do dragão  costumava pesquisar tudo o que dissesse respeito às personagens do filme citado e dos meus desenhos animados favoritos. Despertei, assim, meu instinto de pesquisador. 
A minha professora da primeira série foi, sem dúvidas, uma grande influência que tive para tornar-me um leitor, tendo em vista que em casa não havia estímulo. Minha infância foi totalmente diferente da infância de crianças comuns: eu era muito isolado, passava o dia a desenhar, criar narrativas, tinha poucas amizades e muito medo de sair de casa. Recordo – e isto não quero ampliar aqui – que havia em mim uma sensação de perda, medo e tristeza constante na infância que me sufocava: eu ia para a escola, brincava sozinho em casa e pouco assistia. Gostava muito de encontrar pessoas que contassem histórias, que lessem comigo aquilo que eu gostava de ler...
Lembro-me de que em meus livros da escola apareciam alguns poemas que eu lia exaustivamente. Decorei o poema A porta, de Vinicius de Moraes, na segunda série do fundamental – nunca o esqueci. Num outro livro havia a canção Peixe vivo, que minha mãe cantou diversas vezes para mim e eu ficava inexplicavelmente emocionado.
Eu comecei a escrever muito cedo – minha irmã ganhava agendas e/ou diários e os esquecia: eu me aproveitava da falta de interesse dela e apropriava-me deles. Escrevia, fazia colagens, desenhava personagens que eu inseria em histórias sempre trágicas. Amava ver figuras nos livros. Quando tinha uns doze anos, com sacrifício, iniciei uma coleção de revistinhas da Turma da Mônica, mas me desfiz dela de uma hora para outra quando percebi que não conseguia reunir as cinco revistinhas que eu tanto desejei na infância.
O primeiro romance clássico que eu li foi O Seminarista, de Bernardo Guimarães. Após esse livro, li tudo o que pude de José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo e de Bernardo Guimarães – minha formação foi predominantemente romântica. Uma professora me emprestou Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, e eu fiquei enlevado. Posteriormente, li uma obra intitulada Madame Lewinsk Antropofágica, que tinha um viés Naturalista – passei a ler, neste período, tudo o que pude do Naturalismo: Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, e Luzia Homem, de Domingos Olímpio, foram os meus preferidos.
Depois de muitas e muitas leituras, cheguei às obras do Modernismo. Um colega havia me vendido por uma quantia baixíssima – era o que eu conseguiria pagar – um livro de Literatura de José de Nicola – conservo-o até hoje – e, lendo os muitos trechos, deparei-me com algo comovente: uma família que saía em retirada para encontrar novas possibilidades de vida em outras terras: era a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz.
Minha melhor amiga da adolescência o conseguiu para mim – ela o pegou emprestado na escola. Eu li O Quinze como se pudesse terminar em uma tarde, mas protelei o término e o li em duas tardes: a sensação de quem encontrou algo que desejava há séculos e que, finalmente, poderia sentir como se fosse uma posse inigualável – mesmo que por tão pouco tempo. Eu lia uma página, parava, olhava para o nada, lia novamente, parava, olhava para mim mesmo, lia novamente e respirava comovido como se tivesse saído inexplicavelmente de mim. Como explicar o que senti?
           Quando criança, passei minha vida entre a minha cidade natal  Juazeiro do Norte  e um sítio localizado na cidade vizinha  Crato , próximo ao distrito de Santa Fé, onde moravam meus primos maternos. As viagens para lá eram fabulosas para minha mente infantil cheia de imaginação. Numa das viagens que fiz, mexendo em um baú antigo, que era de um dos meus primos, encontrei um livro de poesia intitulado Solilóquios, escrito no mesmo ano em que eu nasci por Willian Brito e seu irmão Weberth Brito. Quando abri o livro, havia uma dedicatória que iniciava assim: "Ao meu irmão Emerson com muito carinho, um feito imperfeito, mas humilde no seu jeito de ser." Claro que eu não era o Emerson a quem ele se referia, mas considerei aquilo uma imensa coincidência. Não consegui me desgrudar mais do livro e meu primo resolveu que deveria doá-lo para mim. Na escola, perguntei à professora o que significava a palavra "solilóquio". E foi imensa minha surpresa quando ela disse que "solilóquio" era o mesmo que falar consigo mesmo, era uma palavra relacionada à solidão. A palavra mais linda da minha língua é, sem dúvidas, a palavra "Solidão". Nem preciso dizer o quanto aquele livro a mim ofertado, com direito a dedicatória e tudo, me causou felicidade! 
Depois, tive acesso aos poemas de Cecília Meireles  ela que foi minha grande paixão na poesia, ainda hoje tenho poemas decorados do tempo em que li Viagem e Vaga Música. Depois li tudo de Florbela Espanca – ainda hoje sou perdido de amores por ela. E passei a viver Augusto dos Anjos, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Patativa do Assaré. No conto e na crônica, veio o desejo de ler sempre mais e mais e mais: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, Fernando Sabino, Moreira Campos, Ignácio de Loyola Brandão, Luís Fernando Veríssimo...
Quero destacar, em seguida, a leitura de livros que marcaram minha vida profundamente. Do ensino médio à universidade, marcaram minha existência as obras: Meu pé de laranja lima, Quando florescem os ipês, O escaravelho do diabo, Sonhar é possível?, O Alienista, Dom Casmurro, Negrinha, Emília no país da gramática, A hora da estrela, Laços de família, A paixão segundo G. H., Água viva, Ana Terra, Fogo Morto, São Bernardo, Vidas secas, Grande sertão: veredas, Manuelzão e Miguilim, Noites do sertão, Navalha na carne, Venha ver o pôr do sol e outros contos, Verão no aquário, A confissão de Leontina e outros contos, Nove, novena, As três Marias, Dora, Doralina, A Beata Maria do Egito e Memorial de Maria Moura – obra que esperei dois anos para ler e que transformei em minha monografia na graduação.
Privilegiei sempre os autores nacionais, mas também li e amei desesperadamente as obras: Sem família, Felicidade e outros contos, Os miseráveis, Crime e castigo, Os Irmãos Karamazov, A metamorfose, Um artista da fome e outros contos, A cor púrpura, Crepusculário, Alexis ou o tratado do vão combate, A náusea, Entre quatro paredes, O muro, Os Maias, Romanceiro cigano e Cem anos de solidão, dentre muitos outros – estas últimas obras proporcionaram-me leituras inexplicáveis.
Tive o privilégio de ler obras que discorriam sobre a espiritualidade de alguns santos, como: A solidão em Santa Teresinha do menino Jesus, História de uma alma, Escritos de Santa Clara, Francisco de Assis, e outros mais que me deram uma relação profícua com a minha espiritualidade. Ressalte-se, neste itinerário, a Bíblia – com ênfase nos livros poéticos que são os meus preferidos.  
Em algumas escolas, às vezes, o prazer da leitura é destruído pela imposição de obras que ao aluno nem sempre são atrativas. O prazer da leitura, diferente do que ocorreu comigo, infelizmente não acontece naturalmente para alguns alunos - deve ser por isso que alguns professores utilizam-se do "método mais prático": a imposição. De acordo com os tais PCN’s, o aluno deve criar habilidades e competências como falante da língua e a leitura, como se pode constatar, é essencial para que isso ocorra. Eu leio muito e sempre: quando não leio me sinto vazio. Leio obras teóricas, ficcionais e creio que viver sem ler é uma condição insuportável à condição humana.
Para encerrar minha história de excessivo envolvimento com a leitura, que espero dure o tempo em que sobre a terra eu, tristemente, estiver, quero compartilhar um poema de Fernando Pessoa a quem não posso deixar de fazer menção, nem que seja apenas já na conclusão deste memorial simplório. Parece irônico citá-lo, depois de tanto falar em leitura, mas quero apresentá-lo com a intenção de mostrar o quanto ler deve ser uma ação vista sempre como um privilégio, um prazer, um ato de valor inestimável e não como uma obrigação. Ler é para seres de alma ampla, então... Leia e reflita:

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha quer não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.

Fernando Pessoa - 16/3/1935





Nenhum comentário:

Postar um comentário