terça-feira, 13 de agosto de 2013

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE "REFAZENDA", DE GILBERTO GIL


REFAZENDA

Abacateiro
Acateremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão

Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração

Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão

Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate 
E anoitecerá mamão

Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu gosto azedo
Cedo, antes que o janeiro 
Doce manga venha ser 
Também

Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário 
Da leveza pelo ar

Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar

Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba.

(Gilberto Gil)


Ficcionalidade, intencionalidade estética, polissemia e desvio poético são mais que perceptíveis na letra da canção "Refazenda", de Gilberto Gil. Esses elementos caracterizam a literariedade desse texto que ora pretendemos discutir com a intenção mais de colocar em destaque uma singela canção da nossa Música Popular Brasileira, do que realizar ampla análise, tendo em vista que pretendemos uma breve explanação. 
     Composta por oito estrofes, a canção "Refazenda" apresenta versos marcados por uma evidente musicalidade – embora os versos sejam brancos, há recorrência de rimas no interior de alguns deles.
         O título, construído pelo processo derivacional parassintético da formação da palavra (prefixo / radical / sufixo), indica a ideia de que algo que existia por algum motivo se desfez e agora suscita uma reconstrução, renovação de um universo em que o eu lírico – representado por uma voz lírica excessivamente saudosista – personifica o abacateiro e o transforma em seu interlocutor-confidente.
          O eu lírico parece, ao invocar o abacateiro, se conformar com o fato de que o fruto de sua árvore só pode ser oferecido em um tempo específico, como tudo na natureza. Ele parece compreender que não adianta exigir da natureza o que dela queremos ou necessitamos: ela parece reproduzir o proposto em Eclesiastes (Ec 3: 01): "Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu."
Ao dizer: "Abacateiro, / acataremos teu ato / nós também somos do mato / como o pato e o leão" o eu lírico, longe de querer fazer “birra” infantil, se subordina ao tempo e mostra-se conformado com a demora que o tempo estabelece para que o fruto do abacateiro possa ser apreciado: ele, assim como o pato e o leão, também se coloca na mesma condição do abacateiro: o tempo é quem determina quando tudo deve acontecer.
Ao comparar-se ao "pato" e ao "leão", o eu lírico traz à tona o fato de que ao ser humano é evidente sua natureza animal e, desse modo, também se submete às mesmas leis naturais, conforme ele mesmo reconhece: "Nós também somos do mato". O "pato" é um animal domesticável, o "leão" um animal selvagem: essa símile nos remete ao fato de que, embora o ser humano em seu desenvolvimento cognitivo consiga chegar a uma consciência que o torna "superior" aos animais, ele traz em si a condição de ser "domesticado", educado, civilizado, solidário, capaz de ceder às necessidades do outro, mas pode ser também capaz de, para sobreviver, agir de acordo com seu egocentrismo e, é óbvio, feroz e cruelmente.
Podemos perceber ao longo do texto a recorrência da consoante linguodental / t / e as bilabiais / p / e / b / sugestivas de ruídos mais intensos, barulho e, consequentemente, poderiam sugerir a sonoridade de passos em movimento que, se relacionarmos a uma representação do universo infantil, nos remeteria à correria de crianças que brincassem num lugar em que a natureza provavelmente se mostraria em todo seu vigor: uma fazenda, por exemplo. 
O eu lírico, em seguida, afirma: "Aguardaremos / brincaremos no regato / até que nos tragam frutos teu amor, teu coração". A imagem do regato (pequeno córrego, riacho, ribeiro), que nos remete à fluidez da água, poderia sugerir a fluidez da própria vida: enquanto espera frutos, o eu lírico diz que brincará – esta metáfora pode nos indicar a infância como período da vida em que o indivíduo (o fruto ainda verde) se desenvolve, amplia seu conhecimento e prepara-se para a fase adulta (fase madura, portanto de colheita), com as responsabilidades que isto implica.
Nos versos: "Abacateiro, / teu recolhimento é justamente / o significado / da palavra temporão", podemos perceber que o termo "temporão" (que significava "prematuro" e hoje admite também a conotação de algo "tardio") corresponde a algo que vem fora do tempo, é o que ocorre, de acordo com o eu lírico, com o fruto do abacateiro – subordinado à natureza, ele prefere recolher-se, tornar-se, portanto, tardio, porém maduro e deleitável.
O eu lírico diz ao abacateiro: "Enquanto o tempo / não trouxer teu abacate / amanhecerá tomate / e anoitecerá mamão." Os frutos de outras plantas poderiam supri-lo, portanto, durante a espera. Talvez a imagem mais bela da letra dessa canção esteja nesses versos. A sonoridade do verbo "amanhecerá" (que muito se aproxima do advérbio "amanhã" que poderia aparecer seguido do verbo "será"), num criativo jogo de palavras, indica a esperança de um futuro em que aquilo que se deseja poderá finalmente se efetivar. O mesmo ocorre com o termo "anoitecerá".
Essa imagem é ampliada pelo uso dos termos "tomate" e "mamão" em contexto incomum. Enquanto o tempo certo que o eu lírico espera não acontece, o vermelho do tomate – metaforizando o vermelho do sol no amanhecer – e o laranja do mamão – metaforizando o pôr do sol – serão utilizados como subterfúgio, ou seja, o eu lírico parece aceitar o clichê: nem tudo o que se quer, se pode ter. Com isso, o dia nasce, outro morre e o tempo, mais cedo ou mais tarde, para o eu lírico, passará – e isso poderá trazer seu bem-estar e satisfação.
Nos versos: "Abacateiro, / sabes ao que estou me referindo / porque todo tamarindo tem / o seu agosto azedo / cedo, antes que o janeiro / doce manga venha ser / também", podemos perceber novamente a menção a frutos e, nesse caso, há a metaforização dos dissabores, angústias e frustrações representados pelo "tamarindo", e seu azedume. Mas, apesar dos percalços, o eu lírico acredita que o “janeiro doce manga venha ser”.  A manga, e sua doçura, metaforiza a esperança de dias melhores.
Os meses "agosto" e "janeiro", por sua vez, surgem também relacionados, no caso do mês de agosto (oitavo mês do ano e tido, pelo imaginário popular, como o mês do desgosto, macabro, funesto) representado pelo "gosto azedo", enquanto janeiro (primeiro mês do ano e que, pelo imaginário, representaria a possibilidade de reinício da vida, auspicioso) aparece simbolizado pela doçura da “manga".
Na estrofe seguinte, o eu lírico confidencia ao abacateiro que ele será seu "parceiro solitário” durante a espera – espera que associamos a uma alusão à infância e que compreendemos aparecer no texto metaforizada pela expressão: “leveza pelo ar". A infância, nesta perspectiva, estaria vinculada a um período leve, sem conflitos existenciais e de intensa liberdade imaginativa.
         Logo após, o cancioneiro popular é visitado através de um trecho da canção “Mulher rendeira”. O eu lírico segreda ao abacateiro: “Saiba que na refazenda / Tu me ensina a fazer renda / Que te ensino a namorar”. O abacateiro, confidente do eu lírico, também é cúmplice das divagações infantis deste. No imaginário do eu lírico, ainda vinculado aos encantos da infância, ele espera que lhe venham os amores futuros. O trocadilho realizado com um trecho retirado do cancioneiro popular nos indica a relação da infância com os imperativos do tempo, ou seja, o abacateiro deveria ensiná-lo a fazer algo que exige paciência e determinação, enquanto ele ensinaria algo que exige maturidade e experiência.
       O vocábulo “refazenda”, evocado no título, é retomado nesta estrofe e na última de modo repetitivo, em trocadilho com o vocábulo “refazendo” e remete-nos à ideia de que o tempo poderá refazer-se, recompor-se de modo cíclico como a própria natureza sugere (da semente nasce a árvore que dá fruto e lança sobre a terra a semente refazendo seu ciclo natural).
       No último verso, é destacado o vocábulo “guariroba”. Guariroba vem do tupi e significa “indivíduo amargo”. É uma árvore nativa do Brasil e produz um fruto de coloração verde-amarela que possui uma amêndoa comestível. Pode atingir até vinte metros e é típica de cerradões.
         A Guariroba é uma árvore de estirpe solitária, talvez por isso haja a identificação do eu lírico com essa planta, e que é cultivada por meio de sementes. O eu lírico parece envolvido com elementos do campo semântico das plantas e utiliza-os para expressar sua condição de espera, solidão e resignação ante as impossibilidades que a natureza impõe tornando-se parte dessa mesma natureza com a qual precisa ser condescendente.
         Em suma, se pensarmos como a infância é representada no texto em discussão, poderemos observá-la a partir da constante menção à natureza e ao tempo. A vida, sempre passível de sofrer a efemeridade temporal, na infância está em seu início. Mas a fugacidade do tempo, que subjuga a existência humana, não é vista, neste caso, como algo deplorável. Antes, a fugacidade do tempo conduzirá o indivíduo à vivência de experiências inúmeras que poderão proporcionar satisfações – natureza e tempo estão unidos para tornar viável a obtenção dos frutos por parte de quem entende a necessidade de esperar.  
         Nisto, percebemos a fundição simbólica do eu lírico com o abacateiro – ambos não estão sob o jugo da mesma natureza? Ao abacateiro cabe, já que nasceu: crescer, reproduzir, dar frutos, envelhecer e um dia morrer; ao homem o mesmo ciclo não parece tão diferente. Por isso, a intensa identificação perceptível no discurso do eu lírico que tanto recorre, por meio de um discurso que denota passividade e resignação, ao abacateiro que provavelmente o “entenderia” em suas inquietações.
       Algumas leituras que preferem utilizar a biografia do autor e o período histórico em que este viveu (o que não é nosso caso, uma vez que preferimos fazer distinção entre eu lírico e autor), fazem uma leitura de modo a buscar na letra (que fora produzida em 1975, na década de chumbo da ditadura militar) elementos que denotariam uma crítica severa contra o sistema político predominante no país daquela época.
      Por exemplo, o abacateiro seria, de acordo com essa leitura, nas camadas profundas do texto, uma alusão ao militarismo por lembrar a coloração da farda do exército brasileiro. Ao dizer “acataremos teu ato”, o verso estaria em verdade dizendo, ironicamente, que se iria acatar o Ato Institucional de número 5 (AI-5), embora na esperança de dias melhores. Essa especulação seria reforçada por outros versos indicativos da sensação de insatisfação, mal-estar e do “gosto azedo” que o cidadão brasileiro experimentava.
       Recordações de um passado infantil em que suportar a passagem do tempo brincando é uma solução, ou alusão ao período ditatorial que cerceou o Brasil por vários anos?
     Preferimos ler o texto pelo viés do eu lírico do que fazer menção ao que o autor propôs quando escreveu e compôs a obra em pauta. Mas isso não descarta as duas possibilidades de leitura.
      Certos de que esta breve análise não conseguiu esgotar as leituras que este polissêmico texto comporta, encerramos com a intenção de apenas apontar algumas pistas que podem nos auxiliar numa tentativa de compreensão. Sem dúvidas Gilberto Gil, ao desenvolver esta canção, conseguiu realizar uma das mais belas que a Música “Popular” Brasileira tem conhecimento.

Texto de: Émerson Cardoso


7 comentários:

  1. Perfeito!!! Se eu escreve tão bem assim...

    Precisando começar um artigo e nem a inspiração chegou ainda... Mas vc consegue ser inexplicavelmente perfeito...

    ResponderExcluir
  2. Bravo!!! sei que também sou parte desse ciclo de refazendar-se...rsrsrs

    ResponderExcluir
  3. No finalzinho fez-se a confusão - Lindo texto.

    ResponderExcluir
  4. Não fora a preciosa análise - inda que não esgote a precisão, tanta a potência/essência ensaiada no poema - fiquemos com a conclusiva observação: "uma das mais belas" que a música brasileira trouxe a lume nos últimos 50 anos.

    ResponderExcluir
  5. A canção é linda!Gosto da interpretação feita a partir da visão do eu lírico, bem como a partir do momento histórico em que viveu o autor e que lhe proporcionou inspiração para compor essa obra prima da MPB. Nem tudo foi treva, no "período de chumbo" da História do Brasil, e um dos legados, iluminados é a canção Refazenda, ora tão docemente interpretada.

    ResponderExcluir
  6. A canção é linda!Gosto da interpretação feita a partir da visão do eu lírico, bem como a partir do momento histórico em que viveu o autor e que lhe proporcionou inspiração para compor essa obra prima da MPB. Nem tudo foi treva, no "período de chumbo" da História do Brasil, e um dos legados, iluminados é a canção Refazenda, ora tão docemente interpretada.

    ResponderExcluir
  7. Boa tarde professor,
    Sobre esse texto especificamente, é correto falar em "literalidade"?
    Como o senhor assim expressa no início?
    Fiz uma prova de concurso e a banca usou a mesma expressão, e julguei como errada a alternativa, pode me explicar o porquê da literalidade?

    ResponderExcluir