Enquanto caía uma
chuva repentina no mundo, eu atravessei as águas com um imenso guarda-chuva nas
mãos para entrar, não sem comoção, no circo.
Nunca havia entrado em um circo antes, conhecia-o apenas através de imagens de livros e filmes e TV,
nunca pessoalmente. Vê-lo foi constatar que ele era um dos mais pobres e simples que já vi. Um amigo – já falecido – convidou-me para ver o espetáculo
do dia – eu lhe fazia uma visita em dia de feriado amarelo em nossa cidade.
O que era, para mim, um circo? Música, luzes, brilho, palhaços,
equilibristas, engolidores de espadas, cuspidores de fogo, malabaristas, saltos
mortais, animais amestrados? O circo, este de que falo, possuía pouco menos do
que eu esperava.
Havia um palhaço, um cuspidor de
fogo, um equilibrista, uma equilibrista, um cachorrinho amestrado, um bode
amestrado, nada mais. Havia também um público que, de tão simples, chegava ao
extremo da identificação com o aspecto paupérrimo do próprio circo. E o público
ria, e os circenses riam, todos eram cúmplices daquilo que deveria ter “sido”,
mas não “era” pelas trágicas impossibilidades da vida.
As cadeiras brancas, em que sentavam os expectadores, eram da cor da
camisa do dono – muito magro – do circo. Gritos, assovios, risos. As
apresentações se davam no irremediável. A lona azul estava encardida, as
colunas de ferro descoloridas, o palco era de uma humildade gritante. Mas o que
doía mesmo era o figurino dos artistas. Chegava a ser patético o modo como se
vestiam.
Havia trechos do espetáculo em que
se deveria rir. Mas eu, que rio com facilidade das coisas, quando ria era para
não... Era para não. Há situações em que
a comoção nos invade com ousadia.
Sentei-me ao lado do meu amigo e de lá, de onde fiquei, nunca mais pude
me levantar. Olhei contemplativo para cada espetáculo. Ri algumas vezes de modo
forçado – se é que consigo forçar um riso: ele me vem sempre sem que eu
planeje! Terminaram as apresentações, houve um bingo, eu fiquei a um número de
ganhar o prêmio – o prêmio não posso expor, seria doloroso demais. E o tempo se
foi como se foi a chuva que caía há pouco, fora da lona do circo.
O que foi mais comovente? Foi mais
comovente ver as crianças que ali estavam, ou os pais das crianças? Foi mais comovente ver os olhos do público fitarem as apresentações com ânimo sincero, ou perceber que eu nunca vira um circo de verdade e aquele era
decepcionante pela rusticidade com que se exibia aos meus olhos de adulto mais
exigente? Ou será que foi mágoa porque, quando criança, sequer pude ver um
circo daqueles, por mais simples que fosse? Será que doeu mais por eu ter
percebido que meu amigo olhava tudo com olhar mais complacente que o meu - talvez adivinhando que morreria cedo demais? Ou será que foi por eu ter sentido nos
ossos o teor lúgubre que deu um tom melancólico às instalações? Será que foi
por eu ter visto duas meninas com o pai – e elas riam? Será que foi por eu ter
a tendência a retirar de momentos comuns um tom de tragédia e lirismo para
transformar em texto?
Não saberei responder... Nunca saberei.
Assim que saí do circo, com o
guarda-chuva na mão, e meu amigo do lado, eu não era mais um adulto cheio de
infelicidades e dramas particulares. Eu, por alguns segundos, era apenas um
menino que, como se pode constatar, trazia em si a marca dos que ainda não sabem
viver sem comoção.
Andei, andei, andei... Após a esquina, porém, me esperava o-ter-que-voltar-para-casa. A melancolia deu lugar ao mínimo de alegria vivida – quem é
dado a reflexões vive de tragédias! E meus pés seguiram a marcha dos
silenciosos. Notei, logo mais, que precisava me despedir do meu amigo – com a obrigação de
dizer “adeus” eu fui embora. Não sei dizer bem as impressões que o circo deixou no meu amigo, mas em mim... Em mim uma tempestade de sentimentos gritavam dentro do peito: segui em silêncio como ia embora
em silêncio cada circense após suas apresentações. Quem me daria a esperança
daqueles artistas ante público tão fragilizado? Quem?
Texto de: Émerson Cardoso
27/03/11
(Domingo
à tarde)
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