Manuel Maria Barbosa du Bocage (cujo pseudônimo árcade era Elmano Sadino) nasceu em Setúbal, Portugal, em 15 de setembro de 1765. Considerado um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos, Bocage foi tão polêmico quanto foi talentoso. Ele faleceu em 21 de dezembro de 1805 e concedeu-nos, post mortem, esta entrevista.
ENTREVISTADOR:
Você aí, narigudo... Você não é o Bocage de que falam?
BOCAGE:
Eu era...
Já Bocage não sou! ... À cova escura
Meu estro foi parar desfeito em vento...
Outro Aretino fui... a santidade
Manchei... Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!
ENTREVISTADOR:
Sua fama não está ligada muito à ideia de Eternidade. Você é considerado um grande boa-vida, desbocado, briguento. Será que você não pode se apresentar aos nossos leitores de um jeito mais descontraído?
BOCAGE:
Posso sim... Ponha aí então:
Aqui dorme Bocage, o putanheiro,
Passou a vida folgada e milagrosa,
Comeu, bebeu...
ENTREVISTADOR:
Chega, chega... Pode parar, Bocage... Vamos mudar de assunto: você se considerava um homem bonito?
BOCAGE:
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio e não pequeno.
ENTREVISTADOR:
O seu nariz ficou na história, hein!
BOCAGE:
Nariz, nariz, nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!
ENTREVISTADOR:
Você poderia agora falar um pouco sobre sua poesia?
BOCAGE:
Se entre versos mil de esquecimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
ENTREVISTADOR:
Você fala de sua poesia de um jeito que nada tem de irreverente. Diz que os versos alegres e felizes são falsos e fingidos. Mas você tem uma porção de poesias que cantam os campos, os pastores, os prados floridos, não é? E sobre sua vida, você diria que ela foi triste ou alegre?
BOCAGE:
As torvas Parcas me fadaram logo,
Negros agouros sobre mim caíram
E de meu lado em terro voaram
Júbilo e riso.
Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou terna mãe, seu doce agrado;
Segui Marte e depois, enfim meu fado
Dos irmãos e pai me pôs distante.
ENTREVISTADOR:
Muito triste, Bocage... Li numa biografia sua que você perdeu a mãe muito cedo, entrou no exército e viajou muito. Foi isso que você disse, não foi? Você viajou muito?
BOCAGE:
Vagando a terra curva, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da Ventura
Minhas faces com lágrimas inundo.
ENTREVISTADOR:
Mas você viajou porque quis, não foi? O que foi fazer na Índia? Buscar fortuna?
BOCAGE:
Um vivo ardor de nome e fama
À nova região me atrai, me chama...
Nos climas onde mais do que na História
Vive dos Albuquerques a memória,
Nos climas onde a guerra
Heróis eternizou da lísia terra,
Vou ver se acaso a meu destino agrada
Dar-me vida feliz ou morte honrada!
ENTREVISTADOR:
Lá vem você falando de modo complicado outra vez...Nossos leitores vivem no século XXI, Bocage! Não é mais simples você dizer que foi viajar em busca de um nome ilustre? E por onde foram estas viagens?
BOCAGE:
O ditoso Brasil, província bela...
ENTREVISTADOR:
Brasil? Com certeza Rio de Janeiro... E depois? Dizem que você andou na Índia, Goa, Macau... Gostou de lá?
BOCAGE:
Tórrida zona abafa a gente...
ferve o clima...
Arde o ar...
ENTREVISTADOR:
É feio falar mal de cidades onde a gente foi hóspede... Além disso, fique sabendo que esses lugares não são mais colônias portuguesas. Não foi você mesmo, num poema, quem profetizou: "Jaz por terra o Empório do Oriente"? Ou era Império do Oriente? Agora fale um pouco de seus amores... Foram muitos?
BOCAGE:
Da pérfida Gertrúria o juramento
Parece-me que estou inda escutando!...
ENTREVISTADOR:
Gertrúria? Seus biógrafos falam de uma tal Gertrudes, de quem você teria sido noivo, mas que acabou casando com seu irmão... É a mesma pessoa, não? Bem, para não ser inconveniente, vamos mudar de assunto: quem eram seus poetas preferidos?
BOCAGE:
Camões, grande Camões,
Quão semelhante
Acho teu fado do meu, quando os cotejo!
ENTREVISTADOR:
Fale dos poetas seus contemporâneos que, com você, viveram a virada do século XVIII para o XIX em Portugal.
BOCAGE:
Cala a boca, satírico poeta,
Não te metas no rol dos maldizentes... (Com ar de quem não queria falar, mas que, num impeto, gritou)
Franças, Semedos, Quintanilhas,
Macedos e outras pestes condenadas,
Néscios que mamais das vis quadrilhas,
Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
Por versos maus, por trovas aleijadas!
ENTREVISTADOR:
Eles eram tão maus assim? Mas não eram todos membros de uma academia literária, a Nova Arcádia?
BOCAGE:
Ó triste,
Ó Malfadada Academia!
ENTREVISTADOR:
Entendo. Academias são sempre assim... Mas vamos mudar mais uma vez de assunto? Vamos falar sobre a história de sua prisão? Quando? Como? Por quê?
BOCAGE:
A dez de agosto, esse dia,
Dia fatal para mim
Teve princípio o meu pranto,
O meu sossego deu fim...
Do funesto Limoeiro
Já toco os tristes degraus,
Por onde sobem e descem
Igualmente os bons e os maus
Correm-se das rijas portas
Os ferrolhos estridentes
Feroz condutor me enterra
No sepulcro dos viventes...
ENTREVISTADOR:
Foi no ano de 1897, fiquei sabendo... Mas qual era a acusação, Bocage? De que o acusavam?
BOCAGE:
Nem rebelde infração de leis sagradas
nem crime que aos direitos atentasse
Do sólio, da Moral, da Natureza...
A calúnia, de astúcias fértil
Urdiu meus males, afeou meu nome.
ENTREVISTADOR:
Pois é, parece que você foi preso injustamente. Mas também você vivia numa época de: censura, falta de liberdade, corrupção... E quando saiu da prisão você voltou à vida antiga?
BOCAGE:
Qual nada!
Os cem punhais do reumatismo
(Prole fatal na natureza infecta)
Em cada sensação, que vale a morte
Míngua e se evapora o sofrimento.
ENTREVISTADOR:
Foi muito bom falar com você, Bocage. Agora, para que você retorne em paz ao seu descanso eterno, o que gostaria de dizer a nossos leitores?
BOCAGE:
Este, com que se ufana a pedra erguida,
Ah! se encantou com sonoras cores...
Já Bocage não é! não sois, Amores!...
Chorai-lhe a morte... e celebrai-lhe a vida.
Texto retirado e adaptado do livro:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Bocage: Literatura Comentada. Seleção de textos, notas, estudo biográfico e crítico e exercícios por Marisa Lajolo; estudo histórico por Ricardo Maranhão. São Paulo: Abril Educação, 1980.
Nota: As respostas de Bocage são versos seus, ora literais, ora adaptados, extraídos de sua obra Opera Omnia.
Em "Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
ResponderExcluirPor versos maus, por torvas aleijadas!` Saiu torvas quando deveria ser trovas.
Gostei muito do seu blog, parabéns. Espero que aceite minha revisão como colaboração e não crítica. Se puder visite blogdoprofessorchacon.blogspot.com e faça reparos também. Amém.
Obrigado por sua leitura atenta! Eu corrigi agora mesmo! Quanto a seu blog, vou visitá-lo, sim, hoje e sempre que puder, porque vejo que você disponibiliza muito material interessante! Abraço!
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