“O verdadeiro lugar de nascimento é
aquele em que lançamos, pela primeira vez, um olhar inteligente sobre nós
mesmos”.
(Marguerite
Yourcenar)
Não sei se meus conterrâneos atentaram para isto, mas boa
parte dos nascidos em Juazeiro do Norte (os da minha faixa etária, pelo menos)
nasceu na Rua São Benedito – a rua, para mim, mais importante da
cidade.
Nesta rua, localiza-se o Hospital
Maternidade São Lucas – que,
segundo comentário dos veteranos da cidade, era o antigo cemitério dos bexiguentos.
Este hospital tem aos fundos a Rua
Santa Teresa (rua em que
morava minha Tia Etelvina, com quem morei por muito tempo, sobretudo na
adolescência); à direita tem muro colado à Igreja
de São Miguel (onde: minha
mãe casou, minhas irmãs e eu fomos batizados e onde eu fui crismado), que se
localiza à Rua São Francisco;
à esquerda há a Rua da
Conceição – alguns pensam que
é alusão à Nossa Senhora da Conceição, mas poucas pessoas contavam com a
astúcia do sagrado/profano em vigência na cidade: Conceição é, em verdade, o nome de
uma mulher, pouco dada a moralismos aprisionadores do corpo feminino, que morou
nesta rua e cujo nome foi preservado.
Há nome de santo para todos os lados: resquícios da
influência do pensamento religioso ainda forte nessa cidade que cresceu sob a
égide do Padre Cícero Romão Batista – santo para uns, grande político de batina
para outros.
Minha mãe me disse que, no domingo de um ano bissexto,
quando na Igreja de São Miguel os sinos tocavam convidando os
fiéis para a missa das 19h, eu nasci. De fato, em minha certidão de nascimento
consta que nasci às 18h – hora em que o sol despedia-se da terra privando-a de
seus raios luminosos, e hora em que o angelus é ecoado nas igrejas. Luiz Gonzaga
cantava a Ave Maria Sertaneja em algum lugar do Nordeste quando eu
nascia – é o que gosto de imaginar.
Nasci em 20 de maio do penúltimo ano da ditadura militar
(que muito fustigou o povo brasileiro com seu regime autoritário). Quando nasci, com certeza,
na cidade era perceptível ver pessoas vestidas de luto, porque desde o dia 20
de julho de 1934, dia em que o Padre Cícero morreu, as pessoas mais fiéis da
cidade vestem-se, em memória à funesta data, roupa preta durante todo o dia.
Minha mãe, mais dramática que eu, disse que sentira muitas
dores por ocasião do parto e, pensando que ia morrer, fez promessa ao
homenageado do dia. A promessa consistia no seguinte: se tudo ocorresse bem no
parto, ela colocaria o nome de Cícero na criança pouco afeita a nascer. Eu
nasci, ninguém morreu e a promessa foi cumprida - por isto, meu primeiro nome é
Cícero.
A propósito do meu segundo nome, há um fato interessante.
Eu seria Beethoven (nome de um dos meus compositores preferidos), pelo gosto do meu pai.
Mas minha mãe preferiu colocar, cedendo a sugestões da minha avó paterna, o
nome do médico que fizera o parto – segundo ela, dar nome de pessoas
bem-sucedidas traz sorte à criança. Parece-me que foi necessário ampliar o argumento para convencerem meu pai a mudar meu nome: remeteram-se, desta feita, a Emerson Fittipaldi, que foi o primeiro campeão mundial brasileiro de Fórmula 1 (ele foi bicampeão em 1972 e 1974) e Campeão de Fórmula Indy (1989). Meu nome deixou de ser Beethoven e passou a
ser Émerson (com acento gráfico, porque devem ter notado que era uma palavra
proparoxítona e resolveram acentuar).
Depois, acrescentaram o sobrenome materno (Nascimento), precedido da
preposição “do”, e o sobrenome paterno (Cardoso) – o resultado foi um nome enorme: Cícero
Émerson do Nascimento Cardoso.
Uma amiga, que desconhecia a minha história familiar,
disse-me que meus dois nomes são peculiares, porque fazem alusão a Cícero –
jurista, orador, escritor, filósofo, político romano – e Emerson – filósofo e
poeta norte-americano. Outra pessoa perguntou, certa vez, se meu segundo nome aludia ao grupo Emerson, Lake & Palmer, banda britânica de rock progressivo formada na década de 1970.
A expressão “do Nascimento Cardoso” figurou como um
complemento nominal interessante. Considerando-se que o termo “cardoso” é um
adjetivo proveniente da palavra “cardo” – arbusto espinhento –, este parece
aludir diretamente ao fato de que meu nascimento não foi, senão, pungente,
doloroso, sôfrego.
Alguém me perguntou se “cardoso” não estaria relacionado,
também, ao termo “coração”, uma vez que muitas palavras relacionadas ao músculo
cardíaco trazem no radical uma aparente aproximação na sonoridade e grafia:
cardiologia, cardiopatia, cardiovascular... Eu disse que, nestes casos, há o
acréscimo da vogal temática / i /, o que impediria essa associação com o
radical que forma um dos meus nomes, o que sinceramente é uma pena.
Sem muitas opções, tive que nascer. Era um menino de pele
excessivamente clara, muito choro e aspecto inconformado – pois é: parece que
não mudei muito com o passar dos anos.
27/04/2014
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