quarta-feira, 5 de junho de 2019

CONTO: "O MARTÍRIO DE EULÁLIA" (PRÊMIO SESC DE CONTOS - 2018)


A velha Eulália, sentada à porta da frente da pobre habitação, espiava o mundo com olhos conformados. O verde da mata em tempo de chuva eram seus olhos. Se pudesse, para passar o tempo, faria tranças de palha de carnaúba e, com elas, chapéus – aprendera esta arte quando menina.
Na infância, Eulália foi tão maltratada pela mãe que, para livrar-se, assim que se pôs moça, decidiu casar-se com o primeiro que Santo Antônio lhe arrumou. Para o casório, que se deu em mês de maio florido, ela precisou fugir. O noivo, sendo mais velho do que ela sete anos, a levou para morar em terras compradas por ele com suor e sangue. Ele levantou casa, mesmo sem ter móveis para orná-la, no sopé da Chapada do Araripe, nas imediações de um velho tamboril.
Pouco depois de casada, Eulália engravidou. Apenas a terceira criança do casal conseguiu sobreviver. Ela não era feliz com o marido, pois ele era tão trabalhador quanto possessivo e ciumento. Não a deixava sair a não ser para buscar água na cacimba de uns vizinhos. Proibiu-a de fazer trança de chapéu porque ela fez amizade com uma viúva que, uma vez por semana, mandava o filho, já homem feito, ir buscar os chapéus aprontados sem que ele estivesse presente. Diversas vezes imaginou o encorpado rapaz, de rosto grande, com riso de lado e camisa aberta, em sua porta, para com sua mulher prosear. Não sabia como dizer à esposa que imaginar aquele rapaz a conversar com ela em sua ausência era o mesmo que morrer da pior morte.  
            Ele proibiu a mulher de fazer chapéus e esconjurou a amizade dela com a viúva, mas ela não lhe deu ouvidos. Não cuidava de casa? Não dava assistência e educação à menina? Não fazia comida e buscava água todo dia para encher os potes? Água para ele se banhar não era ela quem trazia? Tinha seu direito de espairecer. Ademais, com suas tranças de chapéu, ganhava um tostão que fosse para comprar alguma coisa que ele não podia lhe proporcionar. O marido não gostou de ouvir os argumentos da esposa e disse: “Quem se defende demais malfeito esconde!”
Ao chegar da roça, em fim de tarde fatídico, o marido constatou que a mulher não estava. Gritou seu nome mil vezes, procurou-a nos arredores com desespero. Maldou, de repente, que ela poderia ter ido à casa da viúva. De fato, viu-a já no alpendre da amiga, prestes a sair. Segurava um molho de palha de carnaúba na mão direita e, na esquerda, um corte de pano estampado com flores cinzas que, com o dinheiro dos chapéus, a amiga fizera-lhe o favor de comprar na cidade. O filho da viúva, de riso de lado, preparava-se para acompanhá-la até sua casa, com a menina nos braços. 
            Indignado, o esposo-magoado-esposo correu em direção ao rapaz e tomou nos braços a filha. Eulália, constrangida, despediu-se de todos e o acompanhou. Nada falaram durante o percurso. Em casa, mal ela entrou e o marido a forçou a deitar a menina na rede – ao que ela obedeceu. Ele a arrastou para a cozinha e ordenou-lhe que colocasse as mãos sobre o fogão de barro. Como ela não se mostrou obediente, ele ameaçou: “Ou faz o que digo, ou mato a menina!” Saindo para o terreiro, ele pegou, perto do girau, um machado afiadíssimo. Retornou para a cozinha e a esposa, com olhos em profundas águas, tentou falar algo, mas ele não a quis escutar...
        Sobre o fogão: os braços dispostos, os trêmulos pulsos, os abismados olhos, o apavorado coração a bater, a perplexidade que a impedia de defender-se. Concentrou, o marido, descomunal força nos punhos de ferro e, em golpes certeiros, decepou, amputou, despedaçou, partiu, quebrou, na altura dos pulsos, as polidas-pálidas-pacíficas mãos da esposa. Para golpes certeiros, um grito somente.
No depois: o sangue jorrou em seu rosto, seus olhos verdes avermelharam, embranqueceram seus lábios. Ela sussurrou inaudível nota – o dolente som da não crença no absurdo que a devastava. Sentiu o sangue descer, deslizar, chuva quente, enchente que o chão preenche de dor, enxurrada que o grito não represa, punhos chanfrados que a mágoa não enxuga, ossos achincalhados por másculo metal. Devastada, destruída, ao chão desceu e, na tentativa de apoiar-se, não encontrou as mãos. Quis passear os dedos no rosto: onde as mãos? Quis arrefecer o sangue: onde as mãos? E a voz do marido lhe fustigava: “Pra aprender a não ser desobediente!”
       Os vizinhos, donos da cacimba, levaram-na, de carroça, para a cidade. Os pulsos foram costurados e, por certo, houve milagre – ela sobreviveu. O povo da circunvizinhança inconformado, o povo da cidade comovido. Padre Cícero, recém-falecido, recebeu muita promessa. Quanto ao marido, desapareceu até o dia em que foi encontrado aos pedaços, anos após, em terras paraibanas, porque, como diriam os conhecidos de Eulália: “Quem aqui faz, aqui mesmo tem sua paga!”
A menina, que cresceu com ajuda do povo, não teve infância, nem mocidade, foi sempre adulta para cuidar da mãe. Nunca se soube de familiares cruzando seus batentes, porém a caridade dos vizinhos não as deixou em desamparo. Eulália jamais retomou o assunto, tampouco quis se maldizer da vida. Seus olhos eram profundas águas regidas por singeleza, silêncio e solidão.   
          Foi em tarde fria de maio que se deu. No lugarejo, de repente, apareceu um perfume de rosas tão intenso que o povo se espantou. A menina percebeu, naquele momento, que a velha mãe, que dormitava raramente à tarde, não queria acordar. E seu rosto estava pacificado. O povo foi informado de que a velhinha, da casa sombreada pelo vasto tamboril, havia falecido. Vendo a mãe morta, a menina, abismada, guardou-a no espelho de seus olhos empoeirados e, aturdida, saiu à porta. Deslizava na estrada um tropel de anjos que a convidava a retirar-se pelo mundo – e ela, com a roupa do corpo, enlouquecida, se foi.   

CARDOSO, Émerson. O martírio de Eulália. In: Coletânea de contos: Volume VII / Serviço Social do Comércio - SESC. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018. p. 28 - 30. 

Um comentário: